A religião e o bem-estar de pacientes com doenças graves

Essa é mais uma nota sobre as funções e disfunções de vários conceitos associados com a religião para o bem-estar de pacientes com doenças graves.

Há quase consenso de que a religião, a religiosidade e a espiritualidade “ajudam” a lidar com doenças, particularmente as graves ou as em fase terminal. Koenig, George e Titus estudaram pacientes idosos. A pesquisa é simples: uma enfermeira, treinada para participar da pesquisa, entrevistou 838 pacientes na medida em que eram internados numa instituição médica. [i]

A despeito da dificuldade no desenho da pesquisa, foi aplicado um questionário muito rico na mensuração da religiosidade e conceitos associados – o “bundle” sobre religião. Incluía escalas para medir a participação religiosa, tanto na organização quanto fora dela, a religiosidade “intrínseca”, a religiosidade, avaliada pelo idoso e também por observadores, medidas de espiritualidade (auto avaliada e também avaliada por observadores, e as experiências espirituais do dia a dia. O contexto psicológico e social também foi estudado: sintomas de depressão, o funcionamento cognitivo, o apoio social, a disposição em cooperar, e a saúde física (sempre obedecendo às duas avaliações, externa e do próprio paciente. As tradicionais variáveis sócio demográficas (idade, sexo, raça e educação) também foram incluídas.

O que descobriram?

A religiosidade e a espiritualidade se correlacionavam com maior apoio social, menos sintomas de depressão, as funções cognitivas funcionam melhor e houve menos obstáculos à cooperação com pessoas e grupos.[ii]

Havia, também, relações com a saúde física, mas menos intima do que com a saúde mental.

Evidente, evidencias como essas mostram a utilidade de estimular as funções religiosas e espirituais que os pacientes porventura tiverem como um importante reforço para as terapias convencionais.

[i] Religion, spirituality, and health in medically ill hospitalized older patients, J Am Geriatr Soc. 2004 Apr;52(4):554-62.

[ii] As relações foram estatisticamente significativas, umas no nível de P<.01 e outras no nível de P<.0001.

A espiritualidade combate a depressão

As pessoas reagem de maneira muito diferente à iminência da morte. Uma das áreas de nosso interesse é a relação entre o grupo de comportamentos, crenças e atitudes associadas com a religião, por um lado, e o bem-estar psicológico dos pacientes no fim da vida.

Nelson e sua equipe pesquisaram essas relações entre 162 pacientes terminais que padeciam de AIDS e/ou câncer. Examinaram pacientes que já estavam internados em instituições dedicadas a tornar esse período pré-morte o mais confortável possível, sem qualquer aspiração ou tratamento curativo.

Usaram um questionário e escalas padronizadas.

O principal resultado foi uma clara associação negativa entre o bem-estar espiritual e a depressão. Parecem semelhantes, mas uma funciona no espaço do espírito e outra é um transtorno, uma disfunção no domínio da Psicologia e da Psiquiatria. Nessa pesquisa, as dimensões propriamente religiosas não apresentaram uma relação relevante com a depressão.[i]

[i] Christian J. Nelson, Barry Rosenfeld, William Breitbart e Michele Galietta, Spirituality, Religion, and Depression in the Terminally Ill, em Psychosomatics. Volume 43, Issue 3, Maio–Junho de 2002, pgs. 213-220.

Religiosidade, espiritualidade etc. e a saúde física e mental de idosos

Há quase consenso de que a religião, a religiosidade e a espiritualidade “ajudam” a lidar com doenças, particularmente as graves ou as em fase terminal. Koenig, George e Titus estudaram pacientes idosos. A pesquisa é simples: uma enfermeira, treinada para participar da pesquisa, entrevistou 838 pacientes na medida em que eram internados numa instituição médica.[i]

A despeito da dificuldade no desenho da pesquisa, foi aplicado um questionário muito rico na mensuração da religiosidade e conceitos associados – o “bundle” sobre religião. Incluía escalas para medir a participação religiosa, tanto na organização quanto fora dela, a religiosidade “intrínseca”, a religiosidade, avaliada pelo idoso e também por observadores, medidas de espiritualidade (auto avaliada e também avaliada por observadores, e as experiências espirituais do dia a dia. O contexto psicológico e social também foi estudado: sintomas de depressão, o funcionamento cognitivo, o apoio social, a disposição em cooperar, e a saúde física (sempre obedecendo às duas avaliações, externa e do próprio paciente. As tradicionais variáveis sócio demográficas (idade, sexo, raça e educação) também foram incluídas.

O que descobriram?

A religiosidade e a espiritualidade se correlacionavam com maior apoio social, menos sintomas de depressão, as funções cognitivas funcionam melhor e houve menos obstáculos à cooperação com pessoas e grupos.[ii]

Havia, também, relações com a saúde física, mas menos intima do que com a saúde mental.

Evidente, evidencias como essas mostram a utilidade de estimular as funções religiosas e espirituais que os pacientes porventura tiverem como um importante reforço para as terapias convencionais.

[i] Religion, spirituality, and health in medically ill hospitalized older patients, J Am Geriatr Soc. 2004 Apr;52(4):554-62.

[ii] As relações foram estatisticamente significativas, umas no nível de P<.01 e outras no nível de P<.0001.

Espiritualidade, religião e depressão entre pacientes terminais

A depressão é comum entre pacientes terminais, com pouco tempo de vida. Nesse grupo de pessoas, há muita tristeza, muita desesperança. Nesse grupo, ter ou não ter uma vida espiritual e ter ou não ter uma religião fazem muita diferença. Uma pesquisa, publicada há quinze anos, analisou os efeitos da religião e da espiritualidade sobre pacientes terminais.[i] Eram 162 pacientes com câncer e/ou AIDS, com uma esperança de vida de menos de seis meses. Os pesquisadores usaram medidas padronizadas de alguns conceitos, inclusive a Hamilton Depression Rating Scale (HDRS), que é muito usada nos estudos quantitativos sobre a depressão.

A associação mais intima que encontraram foi entre a espiritualidade[ii] e a depressão: a mais espiritualidade, menos depressão. A espiritualidade alivia muitas pessoas com doenças terminais, no fim da vida delas.

E qual o papel da religião? O impacto da religião sobre a depressão se faz, segundo os autores dessa pesquisa, através da espiritualidade. A equação passa a ter três termos: ter uma religião aumenta a espiritualidade, que reduz a depressão.

Gláucio Soares            IESP/UERJ


[i] Christian J. Nelson, Barry Rosenfeld, William Breitbart e Michele Galietta, Spirituality, Religion, and Depression in the Terminally Ill, Psychosomatics, Volume 43, Issue 3, May–June 2002, Páginas 213-220.

https://doi.org/10.1176/appi.psy.43.3.213

[ii] Foi usada a FACIT Spiritual Well-Being Scale.

ENFRENTANDO A DOR

Penso na dor e em como lidamos com ela. Em uma revista, apropriadamente chamada Schmerz, pesquisadores (Gerbershagen et al) analisaram 450 questionários relativos à dor, preenchidos por pacientes de um departamento de neurologia. Como um conjunto, os pacientes enfrentavam uma parada dura: 82% afirmaram sentir dor nos últimos três meses. Semelhantes na dor, diferentes na reação a ela. Quais são as diferenças e suas consequências? Os pacientes que, a despeito da dor, levavam adiante seus afazeres cotidianos, como um grupo, tinham menos sintomas de depressão e de ansiedade e melhor qualidade da vida. Claro, existe possibilidade de endogenia: os com menos dor, faziam mais coisas. Não obstante, o questionário é, em grande parte, sobre a dor e tenta controlar diferenças na sua intensidade, localização e muito mais. Ficou demonstrada, também, a importância da religião: os religiosos enfrentavam melhor a dor.

GLÁUCIO SOARES             IESP-UERJ

Religiosidade, espiritualidade e o bem-estar dos pacientes do câncer da próstata

 

Há uma relevante pesquisa sobre o papel da espiritualidade num das situações mais difíceis da vida, enfrentar um câncer.[i] Nelson et al estudam a depressão em pacientes de canceres. Abrem o artigo citando a estimativa de que há no mundo mais de trezentos milhões de pessoas com depressão, mais comum entre mulheres (5% a 12%) do que em homens (2% a 3%) – dados americanos. Naquele país, uma em cada seis pessoas sofrerá de depressão na sua vida. Pior: nada menos do que 6% da população terá, pelo menos, um episódio depressivo que durará seis meses ou mais. Não é pouco. A depressão é um mal em si, baixa a qualidade da vida, mas também contribui para outros males e reduz a expectativa de vida.

Um câncer piora todas essas estatísticas. A depressão é ainda mais frequente, seus sintomas são mais pesados e duram mais. Uma estimativa coloca em 38% a prevalência de depressão séria e em 58% a dos que apresentam uma síndrome de depressão ao longo de todo o espectro dessa doença.

O câncer da próstata é o mais frequente câncer que afeta os homens, com cerca de 230 mil novos diagnósticos todos os anos. É o segundo que mais mata, atrás, apenas, do câncer do pulmão. Está associado com a depressão e perto de um terço dos pacientes recebem dos seus médicos a recomendação de fazer uma avaliação e um possível tratamento psiquiátrico. Esses dados se referem somente nos Estados Unidos.

As estatísticas brasileiras são inadequadas e o recurso a um psiquiatra muito menos comum. Sem atendimento, uma percentagem maior dos pacientes “fica sofrendo”.

O artigo de Nelson et al avança o conhecimento acadêmico, mas tem importantes implicações práticas.[1] Ao trabalhar as relações entre espiritualidade, religião e depressão entre cancerosos, abre caminho para o uso de estratégias de enfrentamento da depressão muito mais baratas, mais factíveis (há mais padres, pastores etc. do que psiquiatras) e, possivelmente, mais fácil de ser aceita pelos pacientes.

Religiosidade e espiritualidade não são a mesma coisa. A religiosidade é mais precisa, tem limites mais claros do que a espiritualidade, que é definida pelos autores como algo que ajuda a encontrar propósito, razão e significado na vida. Os autores definem a espiritualidade como mais ampla do que a religiosidade, mas relacionada com ela.[ii] Essa associação não impede que haja pessoas com alta espiritualidade, mas não religiosas, sem religião nem religiosidade, e vice-versa. Conceitos associados, mas não iguais.

Por sua vez, religião e religiosidade não são idênticas. A religiosidade é interna, subjetiva, embora possa incluir, empiricamente, medidas de participação em rituais; a religião abrange “um sistema organizado de crenças, práticas e maneiras de rezar, [adorar, seguir o culto, ] e provê um canal para orientar a expressão da espiritualidade”. Eu acrescento e enfatizo as dimensões institucionais e organizacionais desse conceito multifacetado.

Nelson et al mencionam duas pesquisas que mostram um efeito positivo da espiritualidade sobre dois tipos de pacientes terminais[iii]

Há uma importante especificação nos pacientes de câncer da próstata: usualmente são idosos e os idosos tendem a ignorar ou subutilizar os serviços relacionados com a saúde mental. Na ausência de outros recursos, cresce o potencial da espiritualidade na redução do estresse, da tristeza e da depressão.

Funciona? Há dúvidas.

Smith, McCullough e Poll fizeram uma meta-análise de 147 pesquisas, chegando a uma pequena correlação na direção esperada (r = −0,096).[iv] Comentando essa pesquisa, Nelson et al fizeram uma crítica metodológica a muitas das pesquisas analisadas por Smith et al. A medida de religião ou de religiosidade é simples demais. Segundo eles, estudos que usaram baterias mais completas de perguntas chegaram a melhores resultados em análises univariadas. Larson encontrou correlações mais altas entre religiosidade e depressão (r = −0,20), mas em análises multivariadas as correlações baixaram. Não descarto a hipótese de que boa parte dessa redução se deva à ação interveniente de algumas dessas variáveis, ou seja, a religiosidade contribui para aliviar a depressão por diversos caminhos, inclusive através dessas variáveis, como a existência e a estabilidade de um casamento.

O efeito da espiritualidade sobre a depressão parece ser mais forte do que o da religiosidade. Níveis mais altos de espiritualidade estão associados a níveis mais baixos de depressão. Parte da diferença pode resultar de mensuração mais precisa da espiritualidade. Nelson et al. em 2002 encontraram uma significativa correlação negativa (r = −0,40).[v] Os autores usaram escalas bem testadas, a FACIT, que mede o bem-estar espiritual, e a Hamilton Depression Rating Scale (HDRS).[2] A qualidade da vida é uma dimensão essencial do tratamento, inclusive paliativo, de cancerosos. Os autores usaram a FACT-G, uma extensa escala com 27 itens, tipo Likert.[vi] De 0 (nada) a 4 (muito).[vii] Além disso, os pacientes preencheram outra sub-escala, a FACT-P que trata dos sintomas do câncer e do tratamento.

Os autores levantam a possibilidade de que a relação entre religiosidade e depressão seja mediada pela espiritualidade. Como as pessoas interpretam as dificuldades da vida, inclusive doenças, influencia os seus efeitos. A espiritualidade permitiria isso. A espiritualidade provê uma benigna moldura que permitiria o auto entendimento e meios para enfrentar e lidar com situações existenciais pesadas, particularmente a morte, sem ficarem deprimidas. Algumas situações, como um câncer terminal, limitam muito as opções dos pacientes. Reitero que, nesse vácuo, cresce o potencial da espiritualidade.

Um olhar que ressurgiu vê a espiritualidade como uma ligação entre a religiosidade e a depressão. Nessa ótica, a religião e/ou a religiosidade afetaria a depressão através da espiritualidade, promovendo ou não os aspectos da espiritualidade que ajudam a reduzir a depressão. Esse senão ajudaria a explicar a inconsistência dos resultados de pesquisas relacionando religião e depressão. É uma hipótese interessante, que precisa sair do quadro negro.

Nelson et al aceitam a proposta de Allport de que a religiosidade pode assumir duas formas, intrínseca e extrínseca e defendem a ideia de que a espiritualidade também pode ser dividida em significado (ou sentido) e paz, por um lado, e fé, pelo outro. Propõem que a religiosidade intrínseca tem uma associação intima com a espiritualidade e, também, que ambas se associam negativamente à depressão. Finalmente, a espiritualidade na sua dimensão significado (ou sentido) e paz, mediaria a relação entre religiosidade e depressão.

Os dados desse artigo proveem de pesquisa com pacientes com câncer da próstata tratados no Memorial Sloan-Kettering Cancer Center em Nova Iorque, onde eu me trato. Só descobri isso agora…

Mensurações

Consistentemente com suas hipóteses, os pesquisadores usaram uma escala que distingue entre religiosidade intrínseca e extrínseca. É uma escala de doze itens em formato Likert de cinco pontos.[viii] A espiritualidade foi medida por uma escala validada de bem-estar espiritual, a FACIT.[ix] Ela inclui dois fatores que, segundo os autores, correspondem aos dois tipos de espiritualidade, a fé e a “meaning/Peace”.

E a depressão? A depressão e a ansiedade também foram medidas por uma escala, a Hospital Anxiety and Depression Scale (HADS). É uma escala conhecida, usada há mais de trinta anos.[x] Ela tem sub-escalas, ansiedade e depressão.

Essa cuidadosa pesquisa teve menos pacientes do que eu gostaria, 367, que foram divididos em duas categorias, de acordo com o avanço da doença: 45% nos estágios iniciais e 55% nos estágios avançados.[3]

Como se relacionam as escalas de religiosidade e de espiritualidade? As duas sub-escalas de religiosidade, intrínseca e extrínseca, estão associadas como demonstra o coeficiente de 0,63 (p < 0,01), como estão as sub-escalas de espiritualidade (0,47 p < 0,01). Mostra que as duas sub-escalas de cada conceito são, efetivamente, diferentes. Se aceitarmos as mensurações, não são iguais, sugerindo que cada um dos conceitos tem mais de uma dimensão. Os autores trabalharam com duas, mas pode haver outras.

Como se relacionam com o nível de depressão (medido pela escala HADS Dep) com a religiosidade e a espiritualidade? As correlações apontam na direção prevista pelos autores: as correlações com as duas sub-escalas de espiritualidade são mais altas (-0,64 e -0,35) do que com as duas sub-escalas de religiosidade (-0,23 e -0,07 – esta última não é estatisticamente significativa).

Nesse nível bivariado, as duas sub-escalas de espiritualidade, sobretudo a de “Meaning/Peace”, estão mais intimamente associadas com a depressão do que as duas de religiosidade.

Os autores submeteram essas relações e um teste mais rigoroso, multivariado. Vasculharam a literatura sobre a depressão e a ansiedade para verificar quais as variáveis que se relacionavam com elas, particularmente as de pesquisas que usaram as mesmas escalas. Quais são essas variáveis? Idade; estado civil (com ou sem parceira); variáveis associadas com o câncer da próstata (estágio inicial vs avançado), tempo transcorrido desde que o paciente foi diagnosticado, uso ou não de terapia hormonal. As variáveis psicossociais foram as duas medidas de qualidade da vida (escores nas escalas FACT-G e FACT-P) e a medida de ansiedade (escores na sub-escala da HADS).

A medida de religiosidade extrínseca ficou de fora devido à combinação dos resultados da análise bivariada e o encontrado por outras pesquisas acadêmicas. O modelo como um todo é robusto (F=50,31, p<0,01), e explica 60% da variância nos escores de depressão. A religiosidade intrínseca contribuiu para esse resultado (beta = −0,08, p = 0,03).

Na interpretação desses resultados e na sua inserção teórica, é indispensável lembrar, sempre, que eles se limitam às associações entre mensurações, usualmente em forma de escalas, dos conceitos. Se essas mensurações não expressam esses conceitos, na sua opinião, as associações encontradas não se aplicam aos conceitos. As mensurações apresentadas são definições operacionais e as associações são entre essas definições. As escalas que pretendem medir a depressão, a ansiedade, a qualidade da vida e várias outras tão pouco são as únicas, e há debates acadêmicos sobre qual mede melhor o conceito em questão. Não obstante, essas escalas foram usadas em muitos estudos e foram adequadamente validadas.

Comentários finais

As relações entre religiosidade e espiritualidade não são simples. São fenômenos associados, tanto em muitas teorias, quanto em muitos estudos empíricos que usam mensurações diferentes. Associados não significa iguais. O aumento dos trabalhos sobre esses temas mostrou, como era de esperar, uma crescente complexidade. A separação entre religião e religiosidade foi um dos primeiros passos. O trabalho teórico e empírico da religiosidade também revelou maior complexidade e dimensões – relacionadas, mas não iguais. O artigo trabalha uma separação da religiosidade em dois tipos, intrínseca e extrínseca. O coeficiente de 0,63 nos diz que cerca de 60% da sua variância é comum, mas 40% não é. Já as duas sub-escalas de espiritualidade são mais independentes: 22% da variância é comum; 78% não é, colocando-se a questão de se devemos ou não conceptualiza-las como dimensões de um mesmo fenômeno ou como dois fenômenos independentes.

Para mim, a contribuição mais importante não é a que salientam os autores e corresponde a um momento anterior da história desses conceitos. Está carregada pela dinâmica do olhar de um paciente. O bem estar dos pacientes é muito relevante e não depende, apenas, de variáveis “médicas”, diretamente relacionadas com a doença e o tratamento. A religiosidade e a espiritualidade podem ajudar a que nos sintamos melhor, a que vivamos mais felizes a despeito da doença.

GLÁUCIO SOARES IESP-UERJ


[1] Esse artigo é a base a partir da qual fiz um “crawling” parcial, repensando os conceitos, pensando as relações e seguindo, muito seletivamente, a bibliografia.

[2] A relação continuou significativa (beta = −0,30) num modelo multivariado que controlou a religiosidade, o número de sintomas físicos, o apoio social recebido e o nível de funcionamento do paciente.

[3] A maioria branca (89%), casada (84%) e com educação universitária completa ou mais (74%). Certamente uma amostra não representativa da população de homens americanos.


[i] Christian J. Nelson, Colleen M. Jacobson, Mark I. Weinberger, Vidhya Bhaskaran, Barry Rosenfeld, William Breitbart, e Andrew Roth, “The role of spirituality in the relationship between religiosity and depression in prostate cancer patients”, em Ann Behav Med. 2009 Oct; 38(2): 105–114. doi: 10.1007/s12160-009-9139-y

[ii] Ver Vaughan R., Wittine B. e Walsh R., “Transpersonal Psychology and the Religious Person” em Shafranske E.P., org. Religion and the Clinical Practice of Psychology. Washington D.C.: American Psychological Association; 1988. págs. 483–509 e Ellerhorst-Ryan J.M. “Measuring Aspects of Spirituality” em Frank-Stromborg M., org. Instruments for Clinical Nursing Research. Norwalk, CT: Appleton and Lange; 1988. págs. 141–149.

[iii] McClain C.S., Rosenfeld B. e Breitbart W. Effect of spiritual well-being on end-of-life despair in terminally-ill cancer patients. Lancet. 2003; 361:1603–1607, e Nelson C.J., Rosenfeld B., Breitbart W. e Galietta M., Spirituality, religion, and depression in the terminally ill. Psychosomatics. 2002;43:213–220.

[iv] Religiousness and depression: evidence for a main effect and the moderating influence of stressful life events. Psychol Bull. 2003;129:614–636.

[v] Nelson C.J., Rosenfeld B., Breitbart W. e Galietta M. Spirituality, religion, and depression in the terminally ill. Psychosomatics. 2002;43:213–220.

[vi] Cella D.F., Tulsky D.S., Gray G., Sarafian B., Linn E., Bonomi A., Silberman M., Yellen S.B., Winicour P., Brannon J., et al., The Functional Assessment of Cancer Therapy scale: development and validation of the general measure. J Clin Oncol. 1993 Mar;11(3):570-9.

[vii] Esper P.P., Mo F.F., Chodak G.G., et al. Measuring quality of life in men with prostate cancer using the functional assessment of cancer therapy-prostate instrument. Urology. 1997;50:920.

[viii] Maltby J. The internal structure of a derived, revised, and amended measure of the Religious Orientation Scale: The ‘Age-Universal’ I-E Scale-12. Social Behavior and Personality. 1999; 27:407–412.

[ix] Brady MJ, Peterman AH, Fitchett G, Mo M, Cella D. A case for including spirituality in quality of life measurement in oncology. Psychooncology. 1999; 8:417–428.

[x] Zigmond AS, Snaith RP. The hospital anxiety and depression scale. Acta Psychiatr Scand. 1983; 67:361–370.

Os Paradoxos da Felicidade

Existe uma área nova de pesquisas – sobre a felicidade. Considerada uma das condições mais importantes da humanidade, a felicidade quase não era seriamente estudada – até pouco tempo. Isso mudou: Ruut Veenhoven nos apresenta uma enorme bibliografia e um bem cuidado data base.

Os americanos, e não somente eles, distinguem entre dois tipos de felicidade:

  1. Felicidade através de pessoas
  2. Felicidade  através de coisas

Creio que poderíamos acrescentar uma terceira via, a felicidade através do espírito.

Como trabalhar cientificamente com um conceito tão difícil quanto a felicidade? Não há medida exata, critérios unânimes. Mas a existência de pessoas “que têm tudo para serem felizes e não o são” mostra a importância de tratar o conceito subjetivamente. Feliz é quem se considera feliz!

A auto-definição da felicidade, que pode incluir graus (muito, bastante, pouco etc.), havendo os que tentaram medí-la de maneira mais exata, com escalas de intervalo, passou a ser o conceito operacionalizável dominante. Com base nesse conceito e em medidas baseadas nele, muitas pesquisas foram realizadas nas últimas décadas.

Economistas clássicos, neo-liberais e marxistas pensam a felicidade com alguma semelhança, a partir da riqueza e dos bens à disposição de cada um. A primazia, que não se discute, é dos fatores econômicos. As brigas são internas, um grupo contra o outro.

E os dados? O que dizem os dados? Comparando países o resultado é claro para os que usam o World Value Survey: os habitantes dos países mais ricos, na média, são mais felizes e, dentro dos países, os com mais recursos também tendem a ser mais felizes. Quando comparamos um conjunto maior de países, chegamos aos mesmos resultados: há uma correlação entre a renda per capita dos países e a satisfação com a vida, por um lado, e a auto-avaliação da felicidade, pelo outro – quanto maior a renda per capita (PPP), maior a satisfação e a felicidade –  mas as correlações não são muito altas, permitindo muitos desvios.

Há problemas para generalizar:  se, tomando o mundo como um todo, a associação é válida, há regiões nas quais a associação é nula ou quase nula. A América Latina é uma delas. Entre países latino-americanos, a Argentina, com 12,704.0, tinha a renda mais elevada na época do survey; não obstante, os argentinos avaliavam a sua felicidade abaixo de sete países com renda per capita mais baixa, inclusive a Guatemala que tinha uma renda três vezes menor.

O paradoxo é ainda maior quando consideramos o crescimento econômico recente. Tomando, de cada vez, grupos de países com níveis semelhantes de renda, os que mais tinham crescido eram os que tinham populações menos satisfeitas com a própria vida. Talvez a poupança obrigatória e outros sacrifícios necessários para crescer rapidamente onerem uma parte considerável da população.

Há tetos e há mínimos: a fome conta, na direção intuitiva. Porém, a partir de um consumo mínimo de calorias e de segurança física, doses adicionais de bens materiais não aumentam muito a felicidade das pessoas.

E a duração? Quanto dura a felicidade? Larsen e McKibban concluíram que as pessoas se acostumam com os bens materiais que possuem e que, uma vez adquiridos, eles influenciam cada vez menos a felicidade. Quem quer e adquire, é feliz por pouco tempo; quem quer e não pode adquirir continua infeliz. Evidentemente, quem não quer não é infeliz…

A avaliação da felicidade varia muito menos do que a renda per capita (PPP), o que gera alguns problemas. São escalas diferentes. A renda varia muito mais do que as avaliações dos países e da própria felicidade.

O paradoxo também se aplica a áreas específicas: os mais educados, usualmente, são os mais críticos e menos satisfeitos com a qualidade da educação no país.

A distância entre os dados objetivos e as percepções subjetivas não se limitam à felicidade:  o mesmo acontece em muitas outras áreas. Vejamos a segurança: O Uruguai, o Chile, a Costa Rica e a Argentina eram os países latino-americanos com taxas mais baixas de homicídio de acordo com a pesquisa. Não obstante, suas populações estavam entre as mais insatisfeitas com o nível de segurança, crime e violência nos seus respectivos países – mais de 60% no caso da Argentina e do Uruguai.

Há, portanto, exceções, e muitas, separando os dados “objetivos” das sensações e percepções.

Problema resolvido? Longe disso. Além das muitas exceções, há outros tipos de dados que chamam a atenção para o papel de outras variáveis. Os pesquisadores irlandeses Doherty e Kelly mostram, além de uma grande variação entre os países europeus, que os jovens se consideram mais felizes, os que estão satisfeitos com sua renda estão mais felizes (há muitos com renda alta, mas que querem mais e se consideram infelizes e há muitos com renda baixa, satisfeitos com o que têm, que se consideram felizes), o desemprego também diminui a felicidade (a despeito da proteção social em muitos países europeus). A confiança nos demais e na sociedade em que vivem aumenta a felicidade e ter crenças religiosas também aumenta a felicidade, o que coloca a felicidade individual num contexto maior, social e nacional. Mas a felicidade continua sendo em boa medida, inexplicada: apenas entre uma quinta e uma quarta parte na variância entre as pessoas está explicada. E o resto? E a maior parte da variância?

Não sabemos, e não adianta chutar.

Analisando os dados de vários anos desse mesmo survey, usando uma estratégia chamada de tree analysis, surgiram coisas novas: a saúde, tal qual avaliada pelo indivíduo, era o primeiro determinante da felicidade.  Talvez muitas das influências sobre a felicidade passem pela saúde. Os idosos, com menos saúde do que os jovens, se consideram menos felizes. Definida a saúde como variável primordial, surgem duas outras, a família e a religião, que trocam de lugar na hieraquia explicativa de acordo com a saúde.

Religião? É. A grande maioria das pesquisas concluir que os religiosos são mais felizes e enfrentam melhor as agruras da vida, mas a pesquisadora canadense Sandy L. Anger. Primeiro, concluiu que a maioria da população canadense se considera “algo feliz”, “mais ou menos feliz” – não muito feliz, nem infeliz, muito ou pouco.  Uma supresa: no Canadá, as pessoas não religiosas tendem a ser um pouco mais felizes do que as religiosas, mas os religiosos praticantes são mais felizes. Isso dificulta, mas não contradiz, a explicação baseada na endogenia: as pessoas doentes e infelizes procurariam a religião. Se aceitarmos essa explicação, teremos que aceitar que as que efetivamente se integram a uma igreja e participam mais das suas atividades
mudam o seu nível de felicidade para cima. Quem frequenta mais é mais feliz. A explicação laica para esse fato se baseia no apoio social, inter-pessoal e no combate à solidão.

O estudo da felicidade é área recente, cheia de promessas e de resultados contraditórios. Uma pesquisa patrocinada pelo BID mostra uma relação entre a avaliação que a cidadania faz do país e a avaliação que ela faz de si mesma. Essa é uma área promissora de expansão: a relação entre indivíduo e sociedade, entre indivíduo e estado. Afinal, vivemos em sociedade, gerenciados, bem ou mal, por um estado.

 Gláucio Ary Dillon Soares